“Aos 16 anos matei meu
professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais
legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob
uma ponte no Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba
em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites
espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson,
mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que
é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.”
Assim começa A Lua Vem
da Ásia, de Campos de Carvalho, um dos melhores livros que me caíram nas mãos
nos últimos tempos. Só essa introdução
já justificaria ir mais adiante na leitura, que vale cada página.
É difícil imaginar que
uma obra escrita nos anos 50 do século passado ainda possa surpreender ou
trazer alguma novidade. Afinal, a gente acha que já viu tudo, que sempre é mais
do mesmo. Mas a vitalidade do livro é tanta que, depois que se começa, não há
mais como parar. O primeiro parágrafo, transcrito acima, já dá um gostinho do
que vem depois, e o que vem é muito.
A história é narrada
em primeira pessoa por um narrador que não sabe que vive num hospício. Ora ele
crê estar num hotel de luxo, ora num campo de concentração. Pelo que conta enquanto vai escrevendo,
suas aventuras mi-ra-bo-lan-tes acontecem em lugares como Londres, Marrakesh, Cochabamba,
Zimbábue, etc. Em um momento ele é um diplomata a serviço de um rei africano;
em outro, amante de uma arquiduquesa húngara; mais adiante, é um mendigo em
lugar indeterminado. É ainda agente secreto, músico, traficante de
diamantes, tradutor, etc. etc. Todo o livro é leve, bem humorado, cheio de energia e anda
num ritmo acelerado, recheado de reviravoltas. Há, porém, alguns momentos de
extremo sofrimento e delicadeza e outros de um erotismo divertido.
Todas essas aventuras,
entretanto, são metáforas da nossa vida cotidiana, das nossas relações sociais
e pessoais, do eterno absurdo que é tentar entender quem somos e qual o nosso
lugar no mundo. É um eterno estranhar-se com tudo e com todos, uma incapacidade
de compreender o que realmente não faz sentido, uma rebelião contra o que se
chama de normal. Dizem que há traços autobiográficos do autor, mas sobre isso
não tenho como falar.
O engraçado é que este
livro estava na minha prateleira desde 2008 e eu sempre adiava a sua leitura, embora tivesse interesse. Peguei emprestado de um (à época)
namorado e nunca devolvi (mas não tem problema porque ele também ficou com meu
Viagem ao Fim da Noite, de Céline. Hehehe). Na verdade é uma coletânea de
quatro romances de Campos de Carvalho. Os outros três são Vaca de Nariz Sutil,
O Púcaro Búlgaro e A Chuva Imóvel. Não li nenhum deles ainda mas, se mantiverem
o mesmo nível deste primeiro, em breve virei aqui para falar mais.
A crítica especializada
situa o autor no gênero surrealista. Não discuto isso, até concordo. Mas acho
que, mais do que isso, A Lua Vem da Ásia é genial. E o genial nem sempre cabe
em rótulos.
Se quiserem saber mais
sobre Campos de Carvalho, aqui o link: