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domingo, 30 de junho de 2013

A Lua Vem da Ásia


 
“Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte no Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.”

Assim começa A Lua Vem da Ásia, de Campos de Carvalho, um dos melhores livros que me caíram nas mãos nos últimos tempos.  Só essa introdução já justificaria ir mais adiante na leitura, que vale cada página.

É difícil imaginar que uma obra escrita nos anos 50 do século passado ainda possa surpreender ou trazer alguma novidade. Afinal, a gente acha que já viu tudo, que sempre é mais do mesmo. Mas a vitalidade do livro é tanta que, depois que se começa, não há mais como parar. O primeiro parágrafo, transcrito acima, já dá um gostinho do que vem depois, e o que vem é muito.

A história é narrada em primeira pessoa por um narrador que não sabe que vive num hospício. Ora ele crê estar num hotel de luxo, ora num campo de concentração. Pelo que conta enquanto vai escrevendo, suas aventuras mi-ra-bo-lan-tes acontecem em lugares como Londres, Marrakesh, Cochabamba, Zimbábue, etc. Em um momento ele é um diplomata a serviço de um rei africano; em outro, amante de uma arquiduquesa húngara; mais adiante, é um mendigo em lugar indeterminado. É ainda agente secreto, músico, traficante de diamantes, tradutor, etc. etc. Todo o livro é leve, bem humorado, cheio de energia e anda num ritmo acelerado, recheado de reviravoltas. Há, porém, alguns momentos de extremo sofrimento e delicadeza e outros de um erotismo divertido.

Todas essas aventuras, entretanto, são metáforas da nossa vida cotidiana, das nossas relações sociais e pessoais, do eterno absurdo que é tentar entender quem somos e qual o nosso lugar no mundo. É um eterno estranhar-se com tudo e com todos, uma incapacidade de compreender o que realmente não faz sentido, uma rebelião contra o que se chama de normal. Dizem que há traços autobiográficos do autor, mas sobre isso não tenho como falar.

O engraçado é que este livro estava na minha prateleira desde 2008 e eu sempre adiava a sua leitura, embora tivesse interesse. Peguei emprestado de um (à época) namorado e nunca devolvi (mas não tem problema porque ele também ficou com meu Viagem ao Fim da Noite, de Céline. Hehehe). Na verdade é uma coletânea de quatro romances de Campos de Carvalho. Os outros três são Vaca de Nariz Sutil, O Púcaro Búlgaro e A Chuva Imóvel. Não li nenhum deles ainda mas, se mantiverem o mesmo nível deste primeiro, em breve virei aqui para falar mais.

A crítica especializada situa o autor no gênero surrealista. Não discuto isso, até concordo. Mas acho que, mais do que isso, A Lua Vem da Ásia é genial. E o genial nem sempre cabe em rótulos.

Se quiserem saber mais sobre Campos de Carvalho, aqui o link:

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Ler, Ver, Escrever...

Uma vez, quando eu era criança, fiz um desenho bem caprichado de uma pessoa de perfil, só o rosto. Na minha opinião tinha ficado muito bom. Mostrei pra uma colega de classe e ela me veio com essa: “tua pessoa só tem um olho, é?” e deu a maior risada sarcástica. Fiquei meio decepcionada, achando que meu desenho não estava tão bom assim, já que a colega não tinha conseguido compreender que era uma pessoa de perfil e, portanto, só podia aparecer um olho. Foi meio como o desenho da cobra que engoliu um elefante, no Pequeno Príncipe, que todo mundo pensava ser um chapéu. Porém, no meu caso, era muito mais injusto, já que uma pessoa de perfil deve ser autoevidente.

Acho que foi aí que começaram minhas dificuldades de comunicação com as pessoas. Sempre tive essa sensação de que, pra ser compreendida, preciso buscar as palavras exatas e as frases mais bem formuladas (ou os melhores desenhos), senão elas não vão me entender. Percebo que muita gente não presta atenção no que os outros estão falando. Isso comigo acontece o tempo todo: estou dizendo uma coisa e a pessoa está viajando pelo espaço sideral, conectada a outro tempo, olhando o trânsito. Eu sempre fico meio atônita (e muito, muito frustrada) quando não sou compreendida, ou, pior, quando sou interpretada da maneira errada. É sempre um susto, um soco no estômago.

Talvez daí também tenha surgido minha necessidade de escrever. Escrevendo, posso organizar melhor as palavras e os pensamentos, tenho o tempo de pinçar os melhores substantivos, adjetivos, de construir as melhores frases. As palavras são tão lindas e saborosas!

Etéreo. Pra ser falado sussurrando bem baixinho: “etéééreo!” Não é lindo? Delicado. De-li-ca-do. Cuidado pra não quebrar ao falar. Kkkkkk Estou viajando. A-le-sa-da. Lembrei agora do nome de Lolita estalando na boca de Humbert Humbert logo no primeiro parágrafo do livro. Que delícia!

Mas é assim: escrever pra ser compreendida, pra expressar, pra existir no mundo. Escrever porque é gostoso, e pronto. Isso nem sempre adianta, porque sempre tem aquelas criaturas de coração de pedra que acham tudo uma grande frescura: “escrever não enche bucho!”. Juro que já ouvi isso. Pode até não encher o bucho, mas enche minha mente de felicidade. Flocos de algodão voando na cachola, fazendo cosquinha. Djilícia!
E ler? Ler vem antes. Ler é escrever ao contrário, de fora pra dentro. As palavras entram na nossa mente e ficam ali, tatuadas, dançando, dando cria. É como viver várias vidas simultaneamente. É um "Quero ser John Malkovitch" ainda mais viajado. A gente vê o mundo pelos olhos de outras pessoas.

E o que melhor do que escrever sobre o que se lê, o que se ouve e o que se vê? Por isso o Porto Solar, grupo de leitura que existe no mundo real, se juntou também aqui, no mundo virtual. Acho que falo por todos do grupo quando digo que queremos compartilhar com os amigos a nossa paixão pelos livros, pelos filmes, pelas coisas boas, bonitas e interessantes que vemos no mundo.

Bom, dito isto, quero só deixar claro que Picasso encontrou uma maneira de fazer uma pessoa de perfil mostrando os dois olhos. Se eu fosse um gênio, como ele, não teria buscado as palavras. (risos)