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domingo, 20 de dezembro de 2015

Do amor pelos livros


Eu nasci numa família de leitores. Acho que não pode haver maior sorte no mundo. Na casa do meu pai e na da minha avó paterna eu estava sempre cercada por todo tipo de literatura.
Meu pai sempre gostou de história do Brasil e do mundo, deuses astronautas, arqueologia. Tia Graça preferia os romances, fossem os clássicos da literatura nacional e internacional, fossem os feministas do pós-guerra em diante. Em sua estante tinha Jorge Amado e Shakespeare junto com Simone de Beauvoir. E muitas, muitas revistas, desde as femininas como Nova e Claudia até as semanais de informação. Minha vó tinha fixação pela Roma antiga, e não sei porque cargas d´água encasquetou que Nero era o maior monstro que já existiu na face da terra. Não adiantava citar Hitler, Jack o Estripador, Átila o Huno. Não: Nero era o pior e pronto. Ela contava as histórias sobre ele com um olhar horrorizado, quase como se conta história de fantasma, com a voz um pouco baixa pra não atrair o mal. Só faltava se benzer. Acho até que se benzeu mesmo algumas vezes. No quarto de tia Graça havia uma prateleira alta numa estante onde ficavam os livros proibidos pra mim, por causa da idade. Adivinha quais foram os que eu li primeiro?
  
Minha cidade não tinha livraria mas lá em casa sempre tinha livro novo. As fontes eram várias. Alguns vinham de Recife, outros vinham de um catálogo chamado Círculo do Livro, mensal, que vendia pelos correios e a gente sempre comprava. E por vezes apareciam uns vendedores na porta, então tínhamos coleção completa de Graciliano Ramos, Machado de Assis, etc. Meu pai mantinha (ainda mantém) com os amigos uma rede de intercâmbio: um compra e sai emprestando pros outros. O bom é que até hoje sempre me chega uma novidade, e eu sempre empresto algum dos meus. Agora mesmo estou com dois desses voadores.
Eu criança, todo mundo lia pra mim. Eu tinha livrinhos com historinhas e ficava fascinada com as figuras de uma Bíblia bem grandona de minha vó. Folheava durante horas sem saber ler, só vendo as imagens. Depois que cresci foi que me dei conta de que aquelas eram algumas das pinturas mais clássicas de todos os tempos: a última ceia de Leonardo da Vinci, a descida da cruz de Rembrandt, a anunciação de Fra Angelico. Quando fui ter aulas de história da arte no curso de Jornalismo, todas essas pinturas já me eram familiares. Eu só não conhecia a teoria por trás delas.
Alguns dos meus livros de historinhas eu guardo até hoje. O primeiro que consegui ler por mim mesma foi Pé de Pilão, de Mário Quintana. Conta a história, em forma de versos, de um menino enfeitiçado por uma bruxa que vira um pato e tenta livrar sua vó do feitiço que a transformou numa velha. Pra mim, criatura super ligada à avó, essa história tinha muita importância. E ele tinha umas ilustrações bem ao estilo dos anos 70, meio flower power, meio hippie. Acho que demorei meses pra lê-lo todo, porque ainda estava aprendendo a juntar as sílabas. Kkkkk Olha ele aqui.
 
Depois veio uma coleção inesquecível: Reino Colorido da Criança – Imagem e Som. Eram contos e fábulas de várias partes do mundo, com ilustrações riquíssimas (até hoje não vi nada igual em parte alguma) e com algumas das historinhas narradas em disquinhos coloridos. Olha uma das ilustrações aí à esquerda. Essa era de um conto árabe: o príncipe Kamar e a princesa Budur.
Minha vó tinha uma coleção de poetas de língua portuguesa formada por mini livrinhos que cabiam certinho nas minhas mãos de criança (abaixo, à direita). Nessa época eu já estava alfabetizada e já conseguia ler dando o ritmo dos poemas. Até hoje sei de cor muita coisa de Olavo Bilac, Castro Alves, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, etc. “Ora (direis) ouvir estrelas!”... Essa coleção agora é minha, depois que ela morreu. Já meu pai gostava de Guilherme de Almeida, Augusto dos Anjos... E tia Graça era Vinícius de Moraes, Drummond... Eu juntava tudo e lia. Simplesmente ia lendo.
 
A biblioteca municipal emprestava livros. Desde os oito, nove anos eu já tinha minha ficha lá. O bibliotecário (não lembro o nome dele) me adorava e sempre que eu chegava ele tinha separado algo pra me oferecer. Comecei com os infantis e depois fui progredindo: biografia de Gandhi, Segunda Guerra Mundial, etc. Até o dia em que a galera começou a roubar os livros e a biblioteca deixou de emprestar. Alguém tinha que fazer uma cagada, né?
 
Tia Graça tinha uma amiga, Dade, que tinha ido estudar na Inglaterra e, na volta, apareceu com um monte de coisa interessante, em português: História da Arte da Universidade de Cambridge, autores que eu não conhecia, etc. Todo sábado cedinho íamos para a casa dela para, de lá, ir pra o centro da cidade fazer compras. Enquanto Dade se arrumava e tomava café da manhã, eu rasgava o plástico dos livros dela e lia. Fiquei versada em duas coisas: em autores novos e em peruíces como maquiagem, roupas, bijoux, além de aprender antecipadamente sobre namorados com as conversas delas. Hehehe
 
Meu tempo de leitura propriamente dito se passava no terraço da casa de minha vó. Eram manhãs ou tardes inteirinhas (dependendo do horário do colégio). Eu lembro da luz dourada, do ventinho, da calma, do balanço das folhas do coqueiro que tinha no jardim, do prazer inacreditável que era ficar ali. Essas leituras não tinham critério nenhum: o que caísse na minha mão eu lia. Tinha um carteiro que também gostava de ler e todo dia parava pra conversar sobre o que estava lendo. Há alguns anos, adulta, encontrei-o por acaso no meio da rua aqui em Recife e novamente conversamos sobre livros. Hahahaha!
Assim, quando vim morar em Recife, aos 16, eu já tinha lido Machado de Assis todo, Graciliano Ramos todo, vários autores eu já tinha lido totalmente. Pro vestibular não tive maiores dificuldades nessa área (em compensação, no restante eu sou totalmente ignorante até hoje; não tinha tempo pra matemática, né?).
 
Mas quando eu pensava que já estava bem adiantada na minha vida de leitora, surgiu ele: José Alexandre, o gigante loiro que eu conheci no cursinho e que não foi com a minha cara por pura inveja, porque eu estava lendo Os Versículos Satânicos e ele não tinha lido ainda (risos). Passada a antipatia inicial (dele por mim, não minha por ele), ficamos amigos. E ele me mostrou todo um universo que eu não conhecia: Saramago, Sartre, Kafka, Camus, Bukowski, Asimov, etc. Como é que eu não conhecia esse povo? Como isso nunca tinha caído na minha mão antes? Foi um período mágico. Manhãs e tardes inteiras falando sobre livros, livros, livros. Porém, não sei como, passamos os dois no vestibular: eu pra jornalismo, ele pra engenharia.
Na faculdade (primeiro em jornalismo na UFPE, depois em direito na UNICAP) começaram as leituras acadêmicas: Foucault, Habermas, Bobbio, Kelsen. Descobri que, quanto mais complicado, mais eu gostava. É bom queimar os neurônios. Em jornalismo, me maravilhei com a história da arte. Amor sem fim, pra não abandonar nunca mais. Do curso de Direito propriamente dito não li muita coisa, mas passei os cinco anos lendo filosofia. Hahaha! A biblioteca da Católica é maravilhosa, e lá eu descobri Joseph Campbell, Céline, Paul Auster... não tem livro que chegue!
 
Também aconteceram os namoros literários: o namorado que lia o Bhaghavad Gita, que eu tinha em casa mas nunca havia lido; o que me apresentou a Campos de Carvalho e sabia Baudelaire de cor; o que lia os russos... em russo!
Por fim, não posso esquecer dos grupos de leitura. Assim, de juntar os amigos e ler, simplesmente. Primeiro, dois anos de Nietzsche. Domingo à noite, na casa de Poli, com petiscos e refrigerante. E ninguém faltava. Depois, outro grupo na livraria Cultura, mas demorou pouco.
 
E por último o Porto Solar... Ah, o Porto Solar!...
Parecia o clube da Luluzinha: cinco amigas doidas, toda sexta à tarde, aqui em casa, lendo e fofocando. Não necessariamente nessa ordem. Hehehe. Muita risada, comida (nunca comi tanta besteira na vida), e muita, muita leitura. Mitologia, história, romance, qualquer coisa. Sempre bom, sempre leve, sempre alegre. Como nada no mundo é eterno, acabou. Por vários motivos: casamento, trabalho, estudos, etc. Ainda tentamos manter em outro horário, em outro dia, online, agregar mais amigos, mas não deu. Mas a alma do Porto Solar continua. Aqui nesse blog, em cada livro, em cada assunto legal que a gente vê ou fica sabendo, na amizade que continua.
 
Quando eu ouço Caetano cantar que “os livros são objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor táctil que votamos aos maços de cigarros”, sei exatamente do que ele fala. A cada livro novo que eu pego, sinto o cheiro, folheio, todo um universo é evocado em mim. É a memória afetiva mais forte, a mais viva.
É, os livros são uma parte muito importante da minha vida. De certa forma a definem, definem a mim.