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sábado, 31 de outubro de 2015

O Deus das Pequenas Coisas


Em uma comunidade semi-rural do interior da Índia cresce o casal de gêmeos Rahel e Estha. Sua infância se passa entre caldeirões de geleia e grãos de pimenta da fábrica de Mammachi, sua avó cega: a Paraíso Picles & Polpas. A família, outrora rica e poderosa, é agora só decadência, e tenta se manter com o pouco que restou da prosperidade do passado. Rahel e Estha vivem num mundo entre o real e o imaginário, e têm entre si uma ligação muito mais profunda do que a de quaisquer outros irmãos.

“Naqueles primeiros anos amorfos, em que a memória tinha apenas começado, em que a vida era cheia de Começos e sem Fins, e Tudo era Para Sempre, Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos juntos como Eu, e separadamente, individualmente, como Nós. Como se fossem uma rara espécie de gêmeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas.
Hoje, tantos anos depois, Rahel tem lembrança de acordar uma noite rindo do sonho engraçado de Estha”.

Tudo na família e no velho casarão rescende a nostalgia e fracasso. A mãe, a carinhosa Ammu, soube que sua vida tinha terminado no dia em que se divorciou do marido. As tradições da Índia não têm espaço para mulheres divorciadas. Como também não o têm para as que não casam, como Baby Kochamma, a tia-avó amarga e venenosa que se dedica a infligir sofrimento e dor a todos em sua volta. E mesmo o querido tio Chacko guarda lá no fundo a dor da perda da única filha, Sophie Mol, fruto do tempo vivido na Inglaterra e do casamento com a única mulher que realmente amou. Há também os fantasmas das glórias não vividas do passado, como o avô que foi entomologista imperial e sofreu a injustiça de não ter reconhecida uma nova espécie de mariposa descoberta por ele.
A imaginação dos gêmeos, na plena inocência dos sete anos de idade, cria universos cheios de mistérios que os apartam da vida cotidiana. Até o dia em que, devido a um acontecimento terrível, Estha é devolvido ao pai e separado de Rahel. Eles (e todos os outros membros da família, cada um a seu modo) descobrem, assim, que a vida pode mudar – para pior – de uma hora para outra e assumir rumos inesperados.

A separação, para os gêmeos, é devastadora. Estha para de falar e se tranca num mundo particular. Rahel cresce vazia e alheia ao que acontece ao seu redor. Para complicar mais ainda a situação, a mãe se apaixona por um pária, um homem sem casta. Na rigidamente escalonada sociedade indiana isso é quase como não ser gente. O reencontro só acontece 23 anos depois, mas então todos já são pessoas diferentes e é preciso muito esforço para reconstruir os laços e lidar com as experiências de vida de cada um.

O Deus das Pequenas coisas foi o livro de estreia da indiana Arundhati Roy e foi traduzido para 18 países, além de ganhar o Booker Prize, prêmio britânico de literatura. Nada mau. O livro não prende logo desde o começo. Confesso que em vários momentos achei-o um pouco monótono, mas aos poucos ele vai ganhando mais e mais força e, ao final, é arrebatador.
O micro-universo da família de Rahel e Estha reflete o macro-universo da sociedade indiana, com suas hipocrisias, seus preconceitos, sua rigidez. Uma sociedade baseada em tradições congeladas no tempo, onde não há espaço para o indivíduo e nem para conceitos como felicidade e realização pessoal. Mas no fim fica aquela sensação de que amor, sabedoria, compreensão do mundo - enfim, as pequenas coisas - são tudo o que realmente importa nessa vida.
 

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Um Filme Delicado Sem Pieguice


Preciso começar o post dizendo que muitas (MUITAS) vezes os títulos que os filmes estrangeiros recebem quando chegam ao Brasil colocam tudo a perder. Por que será que as distribuidoras colocam títulos tão ruins que fazem a gente rejeitar os filmes sem nem vê-los? Lembro de um que se chamava Amor Maior Que a Vida (em inglês era Waking the Dead, ou seja, acordando os mortos, o que fazia todo o sentido com o enredo) e eu assisti unicamente porque estava em casa com febre, chovia a baldes e eu não tinha mais nada pra fazer. Ainda bem, porque o filme, ao contrário do nome, era ótimo! E não tinha absolutamente nada a ver com o que o título brasileiro sugeria.

Então esse é também o caso do filme sobre o qual vou falar hoje. Em francês é simplesmente La Délicatesse (França, 2011), mas a distribuidora daqui traduziu como A Delicadeza do Amor. ODEIO filme meloso (nem por longe sou do tipo que assiste comédia romântica), e com esse nome eu não chegaria nem perto. Só assisti porque me foi indicado por um colega que tem bom gosto. Foi por um triz. Feita a ressalva, prossigamos.

Se você foi feliz numa época e, de repente, perde tudo de forma brusca e sem sentido, como continua a viver? É o que acontece com Nathalie, personagem de Audrey Tautou (de Amélie Poulin). No começo eu não estava entendendo pra onde o filme ia, porque tudo aconteceu rápido demais: ela conheceu o amorpravidatoda, se apaixonaram, casaram, estavam felizes, pronto. E agora?

Agora a morte, o vazio. O vazio tão, mas tão doloroso que paralisa, e o melhor mesmo é fingir que está tudo bem, não pensar, ir pro trabalho, comer, dormir.

Assim age Nathalie. Até que um dia, no meio daquela dor que já dura anos e, de tão concreta, é quase fisicamente palpável, surge Markus, um novo colega de trabalho. Do nada (tipo oi quem é você - pá!) ela dá nele um beijo de cinema. Isso poderia levar a vários caminhos, caso ele não fosse a pessoa mais tímida, desajeitada e inábil do mundo, caso ele soubesse o que fazer. Mas não sabe. Nem ele, nem ela. E aí começa uma luta de querer, de não querer, de não saber o que fazer, de tentar, de medo, de insistir. É como quem está se afogando e busca o ar. E vão tateando aqui e ali, errando e acertando. Quem é você? Quem sou eu? O que estamos fazendo?
No meio disso tudo, eles também têm de lidar com as expectativas das outras pessoas. Markus não se encaixa no ideal estético do par romântico. Nathalie não parece muito "normal". Mas, afinal, relacionamentos precisam seguir padrões?

Confesso que sempre tive certas reservas em relação a Audrey Tautou porque, pra mim, ela fica o tempo todo tentando fazer cara de Juliette Binoche. Mas nesse filme ela conseguiu apagar essa impressão. Sua interpretação é simplesmente incrível! Segura, madura, sem cair na apelação fácil, consistente. E o ator que interpreta Markus (François Damiens) também é muito bom, embora eu ache que a cara de mamão é dele mesmo, não do personagem (hehe).

O filme é lindo, sensível sem ser meloso, delicado, e tem passagens de um humor leve. Está longe de ser um dramalhão romântico. É uma história sobre reconstrução, sobre sentimentos e situações que todo ser humano vai viver na vida, de uma maneira ou de outra. Quem já lidou com a morte sabe do que estou falando. E o final é lindo, lindo!
 
Aqui o trailer.