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terça-feira, 29 de setembro de 2015

Livros Fundamentais - Fustel de Coulange - A Cidade Antiga

Há livros ruins, bons, ótimos, inesquecíveis. E há livros fundamentais para a nossa vida. Estes últimos formam uma categoria à parte.

São obras que abrem as portas da nossa mente de tal forma que ampliam e aprofundam nossa leitura da realidade, enriquecem nossa visão de mundo e mostram-nos – enquanto indivíduos e enquanto sociedade – de onde viemos, onde estamos e para onde nosso futuro aponta. Enfim, são livros civilizatórios, basilares, imprescindíveis para qualquer um que queira sair da ignorância e compreender o mundo em que vivemos.

Resolvi criar uma tag aqui no blog para falar sobre algumas das obras que, no meu entender, inserem-se nessa categoria de livros fundamentais. Começo com A Cidade Antiga, de Fustel de Coulange.

O autor trata dos primórdios da civilização greco-romana num tempo antigo. Tão antigo que nem os deuses clássicos existiam ainda, e a religião era assunto privativo da família. Cada uma tinha seus deuses, seus ritos, seus cânticos, suas preces. A religião era o centro desse mundo e o definia. E foi ela que deu origem, depois, à polis grega e a muito do que é hoje a civilização ocidental. Ainda hoje nossa cultura é impregnada de conceitos, costumes e ritos dessa época.

Quando os deuses ainda não habitavam o Olimpo cada família cultuava seu antepassado: o pai, o avô, o bisavô. Sempre em linha paterna, sempre o mais velho do clã. O pai, em vida, era o sacerdote e preservava os ritos. Ao morrer tornava-se, ele próprio, um deus, assim como seus ancestrais (chamados de daimons ou heróis pelos gregos e de manes pelos romanos), e em sua honra um fogo era mantido eternamente aceso no local mais nobre da casa, ao qual pessoas de fora não tinham acesso. Ao fogo lar, como era chamado, faziam-se oferendas, libações, pedidos de proteção. Ele mantinha a família unida, ele era o seu símbolo maior (para ver a beleza desses altares busquem por lararium nas imagens do google).

Era uma sociedade fechada, praticamente sem mobilidade, na qual os laços de parentesco eram formados não pelo sangue, mas pela religião. Uma única família podia ter centenas, até milhares de membros, e todos eles seriam comandados pelo mais velho. O bem principal era a terra e esta era indivisível. Com a morte do patriarca a terra não seria dividida entre os herdeiros: passaria a ser gerida pelo primeiro na linha de sucessão.

Nesse mundo, o casamento não significava a comunhão de duas famílias. Ao casar, a mulher perdia qualquer ligação com seus parentes biológicos e passava a pertencer exclusivamente à família do marido. Essa passagem exigia um rito solene. A noiva saía em cortejo pelas ruas num carro enfeitado e acompanhada de outras mulheres. Ela ia vestida de branco, o rosto coberto por um véu e com uma coroa de flores na cabeça. Um coro cantava: “Oh, hímen! Oh, himeneu!”. Ao chegar à nova casa o noivo tinha que levanta-la nos braços e atravessar a porta com cuidado para que seus pés não tocassem a soleira. Este ato simbolizava sua entrada na nova família. O casal partilhava um bolo e algumas frutas, tudo acompanhado de rezas e na presença do fogo lar do marido.

Com o tempo e com a pressão causada pelo crescimento da população, os ritos e os valores da cidade antiga foram se perdendo, sendo integrados a outros, modificando-se. O fogo lar saiu da residência privada e assumiu o centro da cidade. As famílias uniram-se em núcleos cada vez maiores: fratrias, cúrias, tribos. Aos poucos foi surgindo a polis clássica com sua urbe. Os deuses das famílias mais poderosas passaram a ser adotados por coletividades inteiras até tomarem a forma que conhecemos hoje.

Ao ler a Cidade Antiga vamos reconhecendo, aqui e ali, costumes, modos de pensar e ritos que chegaram até nossos dias e definem muito do que somos. O culto do fogo lar se perdeu, mas a chama continua acesa até hoje: transformou-se na lareira das casas modernas e na luz do santíssimo sacramento que é mantida acesa no altar-mor das igrejas católicas. O rito do casamento mantém ecos daquele passado distante. Relações de gênero, de poder, instituições jurídicas, filosofia, democracia, muito herdamos daquele tempo. Reconhecemo-nos nele.

Ler A Cidade Antiga é abrir os olhos. É trazer o passado até o presente. É se encontrar e se descobrir pertencendo a uma linha contínua no tempo, a uma cultura, a uma tradição. É um livro fundamental para entender nosso pensamento ocidental, como e porque somos o que somos. Ele nos faz ver o mundo ao nosso redor de maneira mais clara e compreender melhor a sociedade em que vivemos e porque é tão difícil quebrar preconceitos e mudar antigos costumes que estão profundamente enraizados na nossa mente. Pode parecer incrível, mas o que somos hoje não mudou tanto assim nos últimos quatro mil anos de história.