Falo
de Holocausto
Brasileiro, livro reportagem de Daniela Arbex que conta a história do
Colônia, o maior hospital psiquiátrico do Brasil, localizado em Barbacena,
Minas Gerais. O relato me encheu de horror mas, sobretudo, me suscitou questionamentos
sobre determinadas crenças que nós, brasileiros, temos sobre nós mesmos. Volto
a esse tema ao final.
O
Colônia foi fundado em 1903 e funciona até hoje, embora nos anos 90 tenha
sofrido uma reformulação. Sua história de quase um século, entretanto, é a
história do que pode ser talvez o maior e mais continuado crime contra os
direitos humanos já cometido pelo Poder Público no Brasil, com a conivência de
toda uma comunidade.
Pelo
menos 60 mil (sim, eu disse SESSENTA MIL) pacientes morreram no local ao longo
do seu funcionamento, a maioria por maus tratos. Muitos não tinham qualquer
diagnóstico de doença mental, e iam para lá como meros dejetos da sociedade. Eles
chegavam aos montes, num trem que ficou conhecido como “trem de doido”, réplica
perfeita da Nau dos Insensatos relatada por Foucault. Eram moças que perdiam a
virgindade antes do casamento, alcoólatras, homossexuais, mulheres confinadas
por seus maridos para que eles pudessem casar com as amantes, gente que se
envolvia em briga de bar, adolescentes estupradas por seus patrões.
"O exílio no hospital foi a forma que o
patrão de Virginópolis (MG) encontrou de silenciar a menina que ele havia
estuprado no período em que ela trabalhava em sua casa. Com então cinquenta e
quatro anos, ele precisava esconder a gravidez da garota a qualquer custo, nem
que, para isso, confiscasse, mais uma vez, a inocência dela.
(...)Mesmo grávida, ela tomou seu primeiro eletrochoque, para “amansar”, disseram os guardas.
(...)
No domingo, sairia do Colônia levando o filho. Quando chegou, no entanto, percebeu algo de errado. (...) Angustiada, ela iniciou a procura pelo menino de três anos.
- Cadê meu filho? – perguntava Geralda a
cada funcionária que encontrava pelo caminho.
- Não está mais aqui. Foi levado para longe
– respondeu uma das freiras que acabava de chegar".
As
condições em que viviam eram absolutamente desumanas. Num edifício projetado
para receber 200 pessoas, chegaram a morar, ao mesmo tempo, mais de cinco mil.
As camas foram retiradas para que o chão fosse coberto com capim e, assim,
pudesse caber mais gente na hora de dormir. Os internos bebiam água do esgoto.
Em
seus piores momentos, o Colônia chegou a presenciar uma média de 16 mortes por
dia, causadas por fome, doenças, maus tratos. Vários pacientes não resistiam
aos eletrochoques. Havia também outras formas de tortura. Durante as noites
geladas da serra mineira, internos eram colocados nus, ao relento no pátio, sem
qualquer proteção. Instintivamente, colavam-se uns aos outros formando um
círculo, e passavam a noite se alternando: os que estavam do lado de dentro iam
para fora, e vice-versa, na tentativa de não morrerem congelados. Nem sempre
funcionava.
A
fome desumanizava. Em uma ocasião, uma das internas mais rebeldes (sem
diagnóstico de doença mental) apanhou um pássaro no pátio e, na frente de
todos, destroçou-o com os próprios dentes e o comeu.
Claro
que todas essas mortes produziam um grande número de cadáveres aos quais era
preciso dar alguma destinação. Começou, então, a venda ilegal de corpos para
faculdades de medicina de todo o país, até o dia em que o mercado ficou
saturado e a direção do hospital passou a dissolve-los numa banheira de ácido
na frente dos internos. O lucro disso tudo, até hoje não se sabe para onde foi.
Também não há notícia do que foi feito do dinheiro obtido com o trabalho de
internos que eram obrigados a construir estradas e fazer outros serviços
pesados.
Era
muito, muito horror: crianças em berços deixadas para morrer, internas grávidas
que passavam fezes nas próprias barrigas para protegerem a si e a seus filhos,
doentes terminais sem qualquer assistência. Enfim, qualquer imagem do inferno
poderia ser menos chocante do que a realidade do Colônia.
O
psiquiatra italiano Franco Basaglia, ao visitar o local, resumiu suas
impressões: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do
mundo presenciei uma tragédia como essa”. Inúmeras denúncias foram feitas antes
que as autoridades tomassem alguma atitude.
Isso
me traz de volta ao que falei no início deste texto: o relato sobre o Colônia
me fez questionar, não pela primeira vez, determinadas crenças que nós,
brasileiros, temos sobre nós mesmos. Costumamos acreditar que somos um povo
solidário, caloroso, cheio de compaixão e até mesmo caridoso. Então como uma
tragédia de tal amplitude pôde acontecer durante tanto tempo numa pacata cidade
do interior mineiro sem que houvesse um clamor popular para denunciá-la? Como uma
cidade inteira convive com tamanho horror durante quase um século e nada faz? A
comparação com o nazismo não é descabida. Na Alemanha da guerra as pessoas
faziam vista grossa à fumaça dos fornos crematórios dos campos de concentração
e seguiam suas vidas normalmente.
Isso
ocorreu em Barbacena, mas poderia ter sido em qualquer outra cidade brasileira
e o resultado seria o mesmo. É preciso questionar nossos conceitos, nossas
crenças sobre quem somos, a fim de que desgraças como esta não voltem a
ocorrer. É preciso saber dos fatos, para que não sejam jamais esquecidos.