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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Elogio da Madrasta - Mário Vargas Llosa em versão erótica


Eu acho o seguinte: se a pessoa está a fim de ler putaria, (é essa a palavra, nem venha dar uma de santinho) tem que pegar logo de boa qualidade. Esse negócio de 50 Tons de Cinza (não li e não gostei) é coisa de mulherzinha que quer dar uma de santa mas tem vontade de ler A casa dos Budas Ditosos. Então, se vai pegar literatura erótica, pegue logo de quem sabe fazer, de um escritor que vai pesar na mão: Nelson Rodrigues, João Ubaldo Ribeiro (embora a Casa dos Budas seja exceção em sua obra, mas justamente confirma o que estou dizendo), Boccage, etc.
Foi o que fiz. Quando vi Elogio da Madrasta, de Mario Vargas Llosa, na estante da livraria, achei o título a cara de Nelson Rodrigues e pensei: aí tem coisa boa e bem escrita. Claro, quem sabe escrever, sabe mesmo, né? Não decepciona. E eu não conhecia essa veia "safadjenha" do autor de livros inesquecíveis como A Festa do Bode. Adorei! Vamos ao conteúdo.
 
Bem, é a história de uma família de Lima, no Peru, composta por pai, filho, madrasta e uma empregada que fica no meio do tiroteio. Dom Rigoberto já está no seu segundo casamento, assim como sua esposa, Lucrécia, que completou 40 anos e só agora aflorou para os prazeres da vida sexual (olha Balzac aí, gente!). O casal praticamente não tem existência própria fora da cama. Tudo gira em torno da super caliente vida conjugal dos dois, suas fantasias, suas práticas noturnas, os intermináveis rituais de asseio e embelezamento de Dom Rigoberto antes de cair nos braços da amada.
 
Mas há também Alfonso, filho do primeiro casamento de Dom Rigoberto. O medo do pai era que o menino não se desse bem com a madrasta e sua vida virasse um inferno. Acontece que é o contrário: a criança gosta muito da madrasta. Muito. Demais, se é que vocês me entendem. E , embora Fonchito seja apenas uma criança, Lucrécia não lhe fica indiferente. Aí a coisa complica.
 
É como eu digo: se vai ler, leia logo de um mestre. Da mesma forma que João Ubaldo tocou em temas tabus, Vargas Llosa também não se intimida diante de um assunto proibido, e tece a história de tal maneira que não dá pra parar antes do fim. A atenção fica presa, querendo saber o que vai acontecer em seguida. Há sempre uma tensão no ar, aquela sensação de quando a gente sabe que não deve ultrapassar certos limites mas mesmo assim ultrapassa.
 
O final, que tinha tudo pra ser meia boca, é arrebatador, assustador, arrepiante. Ao mesmo tempo em que nada é como parece ser, tudo é como a gente tinha pressentido, só que bem pior. Olha, não vou contar mais não. Tem que ler.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Trilogia da Escuridão



Eu sei, ninguém aguenta mais falar de vampiros. Nos últimos tempos houve uma verdadeira avalanche deles em filmes, livros, séries de TV. Todo mundo querendo aproveitar o rastro do sucesso de Crepúsculo e fazer um pezinho de meia. Aí a gente pensa: já deu, né? Mas eu prometo que, para os vampiros dos quais vou falar hoje, vale a pena dar mais uma chance.

Pra começar, qual o seu conceito sobre vampiros? Mortos-vivos de pele pálida e gélida, misteriosos, cheios de sex-appeal e até mesmo um pouco românticos? Ou a coisa esquisita e purpurinada de Crepúsculo? Para ler a trilogia formada pelos livros Noturno, A Queda e Noite Eterna, esqueça tudo isso.

Os vampiros de Guillermo del Toro e Chuck Hogan não têm nada de charmosos nem de sedutores. São criaturas asquerosas, de pele ressecada e grossa como couro, com um apêndice no lugar da língua que se projeta a até um metro de distância e suga o pescoço da vítima. É. Nem presas afiadas nem olhar sensual. E pra eles você não passa de comida. Ele se apaixonar por você é o mesmo que você se apaixonar por uma vaca. Além do mais, o vampirismo, nesse caso, é causado por vermes que provocam uma infecção na corrente sanguínea e deixam a temperatura do corpo quente, como uma febre eterna, e podem ser vistos se movendo sob a pele. E se propaga não apenas pela ferroada, mas, se você ferir o vampiro, os vermes saem escorrendo pelo chão e podem entrar no seu corpo de qualquer jeito. Nojento. Como se isso não bastasse, os vampiros funcionam como uma colmeia, obedecendo a um Mestre e se comunicando telepaticamente. A única maneira de matar tais criaturas é com a luz ultravioleta, seja do sol, seja artificial. Tá bom ou quer mais?

A trilogia toda é muito bem construída. Não sobram pontas soltas nem argumentos falhos. O ritmo é veloz e os personagens, muito bem caracterizados e convincentes, embora um pouco óbvios (não sei se chamo de óbvios ou de clássicos). Tem o sábio que conhece tudo sobre vampiros e se assemelha a Van Helsing, do Drácula. Tem o bad boy cheio de energia que sai dizimando a vampirada. Tem o cientista que usa a razão. E, claro, tem um casal romântico e complicado, como não poderia deixar de ser.

O problema todo começa com um avião que chega a Nova York com todos os passageiros e a tripulação misteriosamente mortos. E vai ficando pior, bem pior. Não vou botar spoilers aqui, mas adianto que o negócio fica tão feio que inclui até um inverno nuclear.

Deu vontade de ler? Ainda tem um temperinho a mais. Os autores criaram, dentro da história, o Occido Lumen, um livro que deve entrar para o rol das obras fictícias que todo mundo gostaria de ler, ao lado do Necronomicon de Lovecraft, da Enciclopédia Galactica de Asimov e do Livro Vermelho de Tolkien. Só pra deixar a gente com água na boca.

Cogita-se que a história vire filme ou algo parecido, mas até agora não há nada confirmado. Aqui um teaser do primeiro volume, Noturno, no youtube.
http://www.youtube.com/watch?v=BTuJCqs2fRs

domingo, 18 de agosto de 2013

Os Últimos Soldados da Guerra Fria


 Acabei de ler hoje Os Últimos Soldados da Guerra Fria, de Fernando Morais (o mesmo autor de Chatô e Olga), que fala sobre as ações de espionagem entre Cuba e os Estados Unidos entre 1990 e o início dos anos 2000. O autor, claramente, toma partido: ele é pró-Cuba. O país é apresentado como vítima de conspirações orquestradas pela comunidade cubana que vive nos EUA (mas eu, que tenho mais de dois neurônios, não preciso engolir essa conversa assim, sem maiores ponderações), embora também tenha seus agentes na Flórida.
Na queda de braço entre os dois países não há bonzinhos, isso é sabido. Se, por um lado, há uma luta desproporcional entre a maior superpotência do mundo e uma pequena ilha comunista (hoje já não tanto) que tenta se manter viva depois da queda dos países da antiga Cortina de Ferro, por outro há, também, um embate entre uma democracia consolidada (tá, com inúmeros questionamentos) e uma ditadura que insiste em não largar o osso.

Ficamos conhecendo em detalhes eventos, personagens, datas e o contexto em que ocorreram. Tudo dando nomes aos bois: os nomes são reais, há fotos das pessoas citadas, há cópias de documentos, etc. Ficamos sabendo, por exemplo, que em Miami há diversas organizações anticastristas que funcionam legalmente, inclusive com registro junto às autoridades americanas (!!!), e que são sustentadas por cubanos que saíram da ilha e foram bem sucedidos financeiramente nos Estados Unidos. Assim, muitas delas dispõem de dinheiro para comprar aviões, armamento, contratar pilotos e agentes, bancar a produção de panfletos e outros materiais de propaganda ideológica. Também tomamos conhecimento de que em boa parte da América Latina funciona um mercado de terroristas mercenários, sem qualquer vinculação política ou ideológica, que por qualquer merreca topam ir a Cuba como turistas e soltar uma bomba.
Há passagens bizarras e até mesmo revoltantes, como as várias vezes em que os aviões dessas organizações invadem o espaço aéreo de Cuba e sobrevoam a capital, Havana, soltando panfletos contra Fidel Castro. E o que Cuba pode fazer? Invadir os Estados Unidos? Óbvio que não. Apenas espernear, denunciar à ONU e ficar por isso mesmo. Até o dia em que resolve abater dois desses aviões e a coisa complica.

O lado B da história é a ação dos agentes cubanos instalados em Miami. São pessoas vivendo com orçamentos apertados, tendo que trabalhar para manter o próprio sustento ao mesmo tempo em que se infiltram nas organizações para espionar. Entretanto, como falei no início, não há bonzinhos. Esses agentes não hesitam em constituir famílias nos EUA como parte de suas “atribuições”. Uma coisa calculada e planejada matematicamente e, desde o início, com prazo de validade: assim que cumprem as tarefas para as quais foram designados, abandonam esposa e filhos e voltam para Cuba sem sequer dar notícia. Algo absolutamente desumano. Também traem amigos, os parentes que ficaram na ilha e quaisquer pessoas que cruzem seus caminhos. São de uma frieza incrível.
O livro é rico em informações e em documentação, é uma pesquisa impressionante, porém por vezes se alonga demais em assuntos que poderia tratar resumidamente (Fernando Morais é prolixo, né? A gente já viu isso em Chatô). Há passagens que prendem a atenção, como a participação de Gabriel García Márquez como mediador numa troca de informações entre Cuba e a Casa Branca, e outras totalmente dispensáveis, como as longas descrições sobre a vida afetiva de alguns agentes. Enfim, indico para as pessoas que tenham realmente interesse no assunto e queiram aprofundar-se em detalhes.

Aqui o link do autor falando sobre o livro no Programa do Jô. Vale a pena ver.

sábado, 17 de agosto de 2013

Edições Anotadas Demais


De vez em quando eu compro umas edições comentadas de alguns livros de que gosto muito. Na minha cabeça, quando um livro é muito bom vale a pena saber mais e mais sobre seu conteúdo, aprofundar mais o assunto ou mesmo conhecer algumas curiosidades. Mas eu vou parar com essa mania. Algumas das minhas aquisições me mostraram que as edições comentadas podem não apenas não trazer nada de substancial que contribua com o prazer de ler o livro, como também podem tirar toda a graça. Vamos aos exemplos.

Eu sempre gostei (acho que como todo mundo) de Alice no País das Maravilhas. Tenho até uma edição em inglês, capa dura, com os desenhos da edição original. Aí achei boa ideia comprar uma edição anotada (essa aí do lado) que saiu há alguns anos. Não deveria ter feito isso. As anotações só me fizeram ver que não há como uma pessoa compreender perfeitamente Alice, a menos que tenha vivido na Inglaterra da era vitoriana, tenha assinado todas as revistas de que Lewis Carroll gostava na época e tenha lido (e compreendido muito bem) o poema Jabberwocky, também escrito por ele. Detalhe: o Jabberwocky é um poema nonsense, o que já dificulta tudo. Ou seja: comprei uma edição anotada só pra descobrir que não entendo nada de Alice. Além do mais, a edição é tão, mas tão, mas tão anotada que quase não há páginas sem comentários, e eles ocupam um terço do espaço. Podia ter passado sem essa (e, confesso, perdeu um pouco a graça).

Quer ver mais? Há muitos anos eu tinha começado a ler Rayuela (em português, O Jogo da Amarelinha), de Júlio Cortázar, e tinha gostado muito. Mas alguém passou a mão no meu livro antes que eu pudesse terminar. Aí, pouco depois, numa viagem a Buenos Aires, encontrei uma versão anotada e não hesitei em comprar, sem nem folhear. Decepção. A tal edição, pra começar, veio com uma introdução de 94 páginas e, ainda, uma bibliografia de referência. Peraí, né? 94 páginas de introdução? Claro que ignorei-as completamente e fui direto para o livro. Mas não adiantou. Praticamente a cada página tem uma nota de rodapé, explicando as minúcias das minúcias, uma coisa totalmente desnecessária. Exemplo: “pela primeira vez, o relato passa à terceira pessoa”. A não ser que você seja muito retardado, não precisa explicar que o relato passou à terceira pessoa, né? Tem outros absurdos, como uma nota explicando o que é a torre Eiffel. Genteeee!!!! Se a pessoa não tem uma informação dessa, desculpe, mas é semi-analfabeta e não tem nem condições de estar lendo o livro, pra começar. Larga Rayuela e vai ler Paulo Coelho. Como se não bastasse, ainda tem mais um detalhe: a história se passa em Paris, e o comentador, achando pouco, dá TODOS os endereços das ruas e dos locais por onde os personagens andam, e algumas vezes coloca até fotos delas. É chato. Mas muito, muito, muito chato.
 
Às vezes eu penso que algumas das pessoas que se encarregam de fazer os comentários dos livros só querem mostrar o quanto são “sabidas”, eruditas e o quanto entendem da obra. Só que botam tudo a perder, porque a única coisa que eu consigo pensar é no quanto devem ser chatas pessoalmente.

domingo, 28 de julho de 2013

Minhas assombrações literárias - e um exorcismo


Alguns livros me metem medo. Tanto, mas tanto, que eu termino por não os ler. É que as pessoas, os críticos, o mundo dizem que eles são tão complexos, tão herméticos ou sobre assuntos tão fora do meu mundinho que eu acabo mistificando-os.

Na minha cabeça eles viram monstros ilegíveis, algo acessível apenas aos mais eruditos. Imagino a cena de alguém que consegue lê-los: um professor de Literatura de Harvard, de óculos fundo de garrafa e totalmente sem vida social, com uma testa enorme, à noite, sozinho numa biblioteca escura, com apenas uma lâmpada focando na página. Ele consulta dicionários, livros de referência sobre a dita obra, faz anotações e pausas para refletir. Tudo muito sério, muito compenetrado.

Como é que eu, Holandinha, uma mera leitorazinha curiosa, que leio deitada com os pés pra cima na parede e reclamando do carrinho de CD pirata que passa tocando funk das cachorras, vou ter condições de chegar num nível desses? Aff! O mundo literário é muito injusto. E o pior é que, não sei se por serem inacessíveis ou se simplesmente porque eu gosto de sofrer, estes são alguns dos livros que eu mais quero ler (roendo as unhas e rangendo os dentes de frustração. Kkk). Quem sabe algum dia?...

Vamos à minha lista de assombrações e, ao fim, eu conto uma que consegui exorcizar.
 

Finnegans Wake
Bom, pra começar, o mito do mitos: Finnegans Wake, de James Joyce. Esse malassombro é considerado um dos livros mais difíceis da literatura universal. É taxado de experimental, de aventura linguística, de genial, de experiência onírica, etc. O problema da leitura é o seguinte: é praticamente intraduzível, porque é cheio de neologismos. Então, quem quiser ler, melhor ler em inglês mesmo. Mas tem que se garantir no idioma, não são quatro anos de Cultura Inglesa que vão dar acesso a isso não. Um comentarista foi tentar explicar pra ficar mais fácil e começou assim: “Uma logorréica tempestade pré-babélica que se sustenta ao longo de mais de 600 páginas e numa mescla de mais de sessenta idiomas. Verdadeira selva de significantes”. Sentiu o drama? E de que trata o livro? E eu sei? A melhor definição que eu vi foi a de que, depois que muitos leitores falaram sobre ele, “foi-se chegando a um consenso sobre o elenco principal de personagens e o enredo geral”. Hahaha!!! Pra vocês terem uma ideia das dificuldades da tradução, vejam o quadro da Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Finnicius_Rev%C3%A9m Dizem que às vezes, à noite, Joyce vem puxar o pé dos leitores afoitos.


Ulisses, de James Joyce
Joyce nasceu com a única finalidade de me fazer infeliz. Tenho certeza. O segundo livro da minha lista é dele também. Nesse caso, a dificuldade não reside na tradução, mas no enredo em si. Ulisses é um romance cuja história se passa, toda, em apenas 24 horas da vida do protagonista, Leopold Bloom. Como eu não li, posso dizer apenas o que sei. O autor condensou a Odisseia, de Homero, nessas 24 horas (!!!!!), e o personagem principal vive todas as peripécias nesse período de tempo. Tudo é uma grande metáfora, e os seres mitológicos são trazidos para o ano de 1904 na forma de pessoas que vão cruzando o caminho de Bloom. Dizem que é difícil, mas muito difícil. Só para os iniciados. Se bem que também tem quem diga que o livro não tem nada demais, é apenas presunçoso. Mas eu continuo com medo dele. Ulisses é tão cultuado por quem conseguiu ler (ou fingiu que conseguiu só pra parecer inteligente) que existe até uma data, o Bloomsday, comemorada em vários países. Em Dublin, na Irlanda, onde se passa a história, os fãs fazem o percurso dos personagens pelas ruas da cidade nesse dia. Joyce 2 x 0 Holanda.


Fausto, de Goethe
Minha dificuldade de encarar esse livro não está nem na tradução nem na história, já bem conhecida: o pacto com o capiroto em troca de vantagens terrenas, blá blá blá. É que, reza a lenda, ele é meio caótico e o autor demorou mais de trinta anos pra escrever a versão que finalmente foi publicada, de forma que é preciso meio que conhecer o que se passou na vida dele, os momentos históricos e sociais correspondentes, etc. Além do mais, como muitos anos decorreram entre as redações das duas partes, em que ele se divide, não há uma linearidade, o tema muda, a visão muda, o gosto do autor muda, muda tudo, enfim. Pra completar, é em forma de poema. É. Vamos esperar mais um pouco para ler esse livro.

 
O Livro Vermelho, de Jung
Jung por si só já é uma viagem. Eu amo, adoro, sou fã. Já li muuuuita coisa dele. Algumas, como o Mysterium Coniunctionis, li de atrevida na adolescência, não entendi nada e tive que ler de novo depois de adulta e com maior conteúdo em termos de conhecimento. Jung era muito erudito, e se a pessoa não tiver um nível de leitura razoável, não consegue acompanhar algumas de suas obras. Outras, por outro lado, são bem acessíveis. O Livro Vermelho, ou Liber Novus, foi escrito logo depois do rompimento de Jung com Freud, mas só veio a público em 2009, porque os herdeiros o mantiveram proibido até aos estudiosos por 70 anos. Por quê? Pra começar, o livro (que é manuscrito) tem origem numa visão que Jung teve durante uma viagem: a Europa toda coberta de sangue e milhões de cadáveres boiando nas águas. Isso foi logo antes da Primeira Guerra Mundial. Ele compreendeu tal imagem como uma visão antecipatória, mas também a relacionou com uma radical mudança interior, com o seu momento particular de vida. A partir daí, mergulhou de cabeça na experiência do renascimento da divindade interior, do encontro do si mesmo, da transcendência das instituições. É uma obra bem pessoal e foi muito reescrita e revisada pelo autor ao longo da vida. Ele próprio nunca se sentiu confiante o suficiente para publicá-la. Eu não acho que a complexidade do livro seja intransponível, mas hesito em lê-lo (por enquanto) porque sei que, pra fazê-lo, é preciso abrir a mente, baixar a guarda e colocar as próprias experiências pessoais dentro do contexto. É preciso um certo nível de intuição. E talvez eu não esteja num momento propício para isso. Mas pretendo ler, sim, mais à frente.


Ainda tem outros livros que eu poderia citar, como o Aurora Consurgens, mas esses são os principais. Agora vamos ver um que eu consegui ler.

Um exorcismo – Grande Sertão: Veredas

Acho que, guardadas as devidas proporções, Grande Sertão está para a literatura brasileira assim como Finnegans Wake está para a literatura universal. Nunca vi nenhum outro livro brasileiro ser considerado tão hermético, tão difícil, tão ininteligível como esse. Antes que eu, finalmente, tivesse coragem de encará-lo, ele estava entre minhas assombrações literárias. Eu nunca tinha lido nada de Rosa, e resolvi que, se era para começar por algum lugar, começaria logo pelo mais difícil.

Gente, me apaixonei desde o começo!!! A linguagem, embora não seja a que usamos no cotidiano, não me pareceu em nada hermética nem incompreensível. Na verdade, acho que é mais uma questão de ritmo, de se acostumar a ela, do que realmente de entendê-la. O livro é poesia pura, é filosofia, é beleza se derramando pra todo lado. Meu exemplar está todo anotado, rabiscado, porque achei tanta coisa bonita que não queria perder, e saí marcando tudo. Eu penso que talvez ele seja mais difícil para os eruditos porque realmente se afasta muito da linguagem oficial. Mas para quem, como eu, é do interior do Nordeste e está acostumado a todo tipo de neologismo e a trocentos jeitos de falar, não tem grande complicação, não. Ler Grande Sertão foi um exorcismo e tanto, foi um grande encorajamento na minha vida de leitora (risos). Já faz muitos anos que li pela primeira vez, e já reli, reli...

 

Agora preciso tratar de desmistificar minhas outras assombrações. Tudo a seu tempo.

terça-feira, 23 de julho de 2013

As Sete Filhas de Eva


De onde viemos? Quem somos? Quem eram os nossos antepassados? Eu, brasileira, nordestina, mestiça, onde estão minhas raízes?

Os mitos de criação de todos os povos tentam explicar. A Bíblia diz que somos, todos os seres humanos, descendentes de um único casal: Adão e Eva. Para os índios, Tupã fez os seres humanos com argila e outros ingredientes e, depois, soprou vida nos seus narizes. Os maias contavam que fomos criados do milho.

O certo é que a ciência já demonstrou que o ser humano é o resultado de um longo processo de evolução, junto com as demais espécies desse planetinha djilícia! E a genética vem ajudando a encontrar nossas raízes ancestrais. É disso que trata As Sete Filhas de Eva.

 
O autor, Bryan Sykes, é geneticista da Universidade de Oxford. Participou, dentre outras pesquisas importantes, dos estudos com o Homem do Gelo (batizado de Ötzi), aquela múmia famosa encontrada nos Alpes italianos. Descobriu, inclusive, descendentes diretos de Ötzi vivendo hoje na Europa. 

Pois bem. Sykes estava por ali, no seu laboratório, estudando os genes do Homem de Gelo, quando teve um momento “eureka”, desses que os cientistas têm de vez em quando: estudar profundamente o DNA mitocondrial, que, por suas características únicas, pode revelar as origens da humanidade.

Como assim, tia Holanda? Assim: nós temos dois tipos de DNA nas nossas células. O primeiro é o que fica no núcleo celular. É aquele que herdamos metade do pai, metade da mãe. O segundo é um DNA que fica fora do núcleo das células, no citoplasma, mais especificamente nas mitocôndrias (não sabe o que é isso não? Vai no Google e olha, que é difícil de explicar aqui). Esse segundo tipo a gente herda somente da mãe, porque ele fica no citoplasma do óvulo e no flagelo do espermatozoide. Como o flagelo se perde no momento da fecundação e não entra no óvulo, a gente fica, em termos mitocondriais,  só com o da mãe mesmo.

O momento eureka nisso é que, se herdamos só da mãe o DNA mitocondrial, é possível traçar, estudando-o, uma linha contínua que vai de filha para mãe, avó, bisavó, tataravó... até o início da humanidade. Mas sempre pelo lado materno. Assim, eu posso saber se minha tatataravó veio da Europa, da Ásia, da Polinésia, etc.

Pois o danado do Sykes se pegou com o DNA mitocondrial e conseguiu descobrir coisas incríveis. Por exemplo: todos os europeus da atualidade descendem de apenas sete mulheres (as sete filhas de Eva - dããã!!!). E estas, por sua vez, descendem de outras, ainda mais antigas, nascidas na África. Resumindo: todos os seres humanos do mundo atual descendem de apenas 30 mulheres. Crescei e multiplicai!

Ele fala com muita sensibilidade e inteligência sobre cada uma dessas sete mulheres, o contexto material e cultural e a época em que viveram. A cada uma dá um nome e para cada uma cria uma história que nos ajuda a visualizar o tipo de vida que tiveram. É maravilhoso!

O livro em si é ótimo de ler. O assunto pode ser meio cascudo, mas o autor consegue explicar de forma fluente, leve e muito bem humorada. Como na passagem em que ele conseguiu extrair DNA de uma múmia de nove mil anos encontrada na região de Cheddar (a do queijo) na Grã Bretanha, e comparou com o DNA da população local atual, inclusive com o Lorde da região.

“Quando recebemos o resultado, não foi surpresa que Lord Bath não fosse aparentado com o Homem de Cheddar. Não havia razão especial para que fosse. Mas seu mordomo, Cuthbert, um dos que haviam doado amostras durante minha visita a Longleat, tinha a mesma sequência. De repente ele podia alegar uma antiguidade familiar que se estendia por nove mil anos, fazendo o pedigree de quinhentos anos da família Thynn parecer distintamente nouveau. Perguntei a Lord Bath como Cuthbert recebera a notícia. Será que mudara sua atitude para com a aristocracia?
- Bem – respondeu ele com um sorriso -, ele tem se sentido muito seguro ultimamente.”

 
Uma nota pessoal

É interessante que eu tenha lido esse livro justamente agora. Cerca de uma semana depois que terminei de lê-lo, minha avó materna, vó Nanú, faleceu (exatamente quatro dias atrás). Eu vinha fazendo tantas reflexões sobre meu lugar no mundo, sobre minha identidade, minhas origens...


Quero deixar aqui minha homenagem para Ana Maria, Nanú. Meu DNA mitocondrial, meu sangue, meu coração, minha ancestral. Eu, Holanda, filha de Socorro, filha de Ana (Nanú), filha de Cirila, uma italianinha que veio para o Brasil ainda adolescente. De qual das sete filhas de Eva Cirila descendia? De qual delas Nanú, Socorro e eu? Somos todas galhos de uma árvore imensa, cujas raízes se perdem na névoa do tempo. Obrigada, minha vó, por estender seus galhos até mim.

sábado, 13 de julho de 2013

As Fotografias de Adriano Aquino - Poesia Escrita Com Luz

Conheci Adriano Aquino de uma maneira meio torta. Na época do (agora jogado às traças) Orkut eu andava interessada em comprar uma câmera fotográfica profissional e sair por aí clicando o Recife. Desde as aulas de fotografia no meu curso de Jornalismo eu gostava do assunto, mas minha Pentax analógica estava aposentada, quebrada e não tinha mais conserto. Assim, entrei para uma comunidade de fotografia pra pegar algumas dicas com o pessoal e recomeçar minha “carreira” abandonada. O grupo vivia marcando de se encontrar para tirar fotos, mas nunca rolava. E eu não tinha comprado minha câmera (não comprei até agora; vergonha!), mas tinha decidido que iria assim mesmo, com uma máquina comum. Finalmente marcamos de fazer um passeio no Catamarã.
 
Era um sábado chuvoso, eu estava decidida a dar o bolo na galera, mas uma amiga minha tinha visto Adriano no Orkut, achou “interessante” e praticamente me obrigou a ir (acho que ele não sabia disso; vai ficar sabendo agora kkk). Quem sou eu pra empatar as amigas, né? Chegando lá, deu tudo errado: da comunidade toda só Adriano e eu fomos, minha amiga travou, não deu uma palavra com ele e eu fiquei fazendo a simpática. Choveu o tempo todo, minhas fotos ficaram horríveis (as dele devem ter ficado ótimas, pra variar) e, na volta, o carro da minha amiga ainda quebrou, na chuva (não riam!).
 
Tempos depois essa minha amiga morreu num acidente de carro (perda irreparável), eu esqueci temporariamente a ideia da fotografia e saí da comunidade. Porém, como Recife é um ovo, me aparece Adriano namorando outra amiga minha. Foi quando fui ver que ele é gente boa e, sobretudo, um artista da luz. Gente, como é que vou falar das fotos de Adriano Aquino? Melhor mostrar, né?
 
Não é só questão de enquadramento, de luz, de foco, velocidade, linguagem. Não sei o que é. Ele capta a alma das coisas, capta o deslumbramento que a gente só tem ao vivo. Sabe dar o tom da imagem: introspectivo, bem humorado, qualquer coisa. As luzes e as sombras, as cores, os tons, tudo é perfeito. Às vezes as imagens parecem ter sido pintadas em aquarela. Eita, menino danado! Poderia estar na National Geographic.
 
 
As fotos falam. A gente fica meio pensativa, olhando, olhando... Dá pra criar um conto a partir de cada uma delas. São mundos imaginários recortados de dentro do mundo real. Lindo! Lindo!

 
Quando eu for comprar minha câmera (eu vou comprar, não riam de novo!) vou pedir umas dicas. :-)
No site dele http://www.adrianoaquino.com/ tem material pra embriagar os olhos, ficar bêbado de beleza. E estão disponíveis para compra.  São imagens realmente maravilhosas. Adriano tem mais que técnica. Ele tem o dom.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Mil Viagens Pelo Céu

Como boa cria dos anos 70/80, cresci vendo TV. Via tudo: filmes, séries, desenhos, programas de auditório, o que aparecesse. Menina criada por vó, sem poder brincar na rua, eram os livros, as revistas das minhas tias e a TV que faziam minha mente viajar.

De todas as séries que vi quando criança, nenhuma me influenciou mais do que Cosmos, de Carl Sagan, lançada em 1980 e exibida aqui no Brasil uns dois ou três anos depois. Ainda hoje acho que foi a melhor série já produzida pela TV em todos os tempos, entre ficção e não-ficção. Quem não viu na época talvez não se maravilhe tanto vendo hoje (foi relançada há alguns anos em DVD, e com atualizações, pela Superinteressante), mas para a meninada que viu quando estava na casa dos nove, dez anos, foi inesquecível.

A série era sobre astronomia, mas tinha muito mais: falava sobre arqueologia, história, filosofia, arte, ciência em geral e, sobretudo, sobre a jornada do conhecimento humano. Foi a primeira vez que ouvi dizer que o tempo não era absoluto, mas relativo; que Alexandria tinha uma biblioteca fantástica; que Eratóstenes mediu a circunferência da Terra comparando as sombras de duas varetas ao meio dia em duas cidades diferentes, etc. etc. etc. Carl Sagan dizia que "somos todos feitos de poeira estelar". Não é poesia pura?


Poderia gastar horas escrevendo aqui sobre tudo o que Cosmos me ensinou e, mais ainda, sobre tudo o que despertou na minha curiosidade. Foi por conta da série que eu sempre quis – e continuo querendo - aprender muitas coisas e que eu ainda hoje tenho fascínio por tudo o que diz respeito a astronomia. Eu sou meio que uma astrônoma frustrada. Qual menina teve Carl Sagan como primeiro amor platônico? Acho que só eu (risos). A série era um luxo só: imagens da NASA, apresentador maravilhoso e trilha sonora de Vangelis (o mesmo que fez a trilha de Blade Runner). Inesquecível o tema principal, Alpha (http://www.youtube.com/watch?v=rT5zCHn0tsg). Ainda hoje me transporto para a nave espacial da série quando escuto. Uma verdadeira viagem!

Carl Sagan morreu (tá, a morte acontece com todo mundo, mas não dava pra esperar um pouco mais? Congresso Nacional tá aí, né? Não morre um!), mas nunca mais eu deixei de AMAR astronomia e ciência em geral. E vez por outra estou por aí fuçando a internet e acabo descobrindo coisas legais. Vamos a elas.

O site que mais gosto, sem dúvida, é o Astronomy Picture of The Day (APOD), da NASA. É simples: uma foto de astronomia por dia (às vezes são vídeos), cada uma mais deslumbrante que a outra. As fotos vêm todas com explicações (em inglês) e ainda dá pra pesquisar no site por assuntou ou ver as fotos que já foram publicadas. O link: http://apod.nasa.gov/apod/ap130707.html . Sente só o drama (essa é a nebulosa da Borboleta).

 
Outro site que eu também gosto muito é o WorldWide Research, da Microsoft. Na verdade é um programa que você baixa no computador e ele te dá imagens de 27 telescópios, satélites e sondas espaciais. Dá pra você andar por Marte junto com a sonda que está lá neste momento, viajar pela Via Láctea e por outras galáxias, ver os corpos celestes mais estranhos e, se você tiver óculos 3D, ainda aproveita muitas outras coisas. Muuuuito bom! Aqui: www.worldwidetelescope.org

O youtube também não deixa por menos. Já pensou em ouvir os sons dos planetas? Bom, eles não emitem sons de verdade, mas emitem sinais eletromagnéticos que os cientistas pegaram e converteram em som. É interessante e, algumas vezes, assustador. Ouçam o “som” de Júpiter: http://www.youtube.com/watch?v=e3fqE01YYWs . Além disso, há programas sobre astronomia da BBC e de outros canais, explicações sobre teorias viajadas como a dos multiversos e a das supercordas, etc.

O site da NASA, óbvio, tem tudo e mais um pouco. Sabia que já aterrissamos uma sonda em Titã, uma das luas de Saturno? Pois foi. A Cassini-Huygens aterrissou lá em 2005. Lá tem rios, só que são de metano líquido. Ó a imagem:
http://www.nasa.gov/mission_pages/cassini/multimedia/gallery/pia07230.html

Pronto. Pra não me alongar mais ainda do que já me alonguei, quero deixar só um link que acho fan-tás-ti-co! Você move a barra pra lá e pra cá e vê a escala exata de tudo o que há no universo. É tão incrível que a gente não consegue apreender totalmente. Sem palavras!  http://htwins.net/scale2/lang.html

Olhar para o espaço é encontrar nosso lugar no universo.

domingo, 30 de junho de 2013

A Lua Vem da Ásia


 
“Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte no Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.”

Assim começa A Lua Vem da Ásia, de Campos de Carvalho, um dos melhores livros que me caíram nas mãos nos últimos tempos.  Só essa introdução já justificaria ir mais adiante na leitura, que vale cada página.

É difícil imaginar que uma obra escrita nos anos 50 do século passado ainda possa surpreender ou trazer alguma novidade. Afinal, a gente acha que já viu tudo, que sempre é mais do mesmo. Mas a vitalidade do livro é tanta que, depois que se começa, não há mais como parar. O primeiro parágrafo, transcrito acima, já dá um gostinho do que vem depois, e o que vem é muito.

A história é narrada em primeira pessoa por um narrador que não sabe que vive num hospício. Ora ele crê estar num hotel de luxo, ora num campo de concentração. Pelo que conta enquanto vai escrevendo, suas aventuras mi-ra-bo-lan-tes acontecem em lugares como Londres, Marrakesh, Cochabamba, Zimbábue, etc. Em um momento ele é um diplomata a serviço de um rei africano; em outro, amante de uma arquiduquesa húngara; mais adiante, é um mendigo em lugar indeterminado. É ainda agente secreto, músico, traficante de diamantes, tradutor, etc. etc. Todo o livro é leve, bem humorado, cheio de energia e anda num ritmo acelerado, recheado de reviravoltas. Há, porém, alguns momentos de extremo sofrimento e delicadeza e outros de um erotismo divertido.

Todas essas aventuras, entretanto, são metáforas da nossa vida cotidiana, das nossas relações sociais e pessoais, do eterno absurdo que é tentar entender quem somos e qual o nosso lugar no mundo. É um eterno estranhar-se com tudo e com todos, uma incapacidade de compreender o que realmente não faz sentido, uma rebelião contra o que se chama de normal. Dizem que há traços autobiográficos do autor, mas sobre isso não tenho como falar.

O engraçado é que este livro estava na minha prateleira desde 2008 e eu sempre adiava a sua leitura, embora tivesse interesse. Peguei emprestado de um (à época) namorado e nunca devolvi (mas não tem problema porque ele também ficou com meu Viagem ao Fim da Noite, de Céline. Hehehe). Na verdade é uma coletânea de quatro romances de Campos de Carvalho. Os outros três são Vaca de Nariz Sutil, O Púcaro Búlgaro e A Chuva Imóvel. Não li nenhum deles ainda mas, se mantiverem o mesmo nível deste primeiro, em breve virei aqui para falar mais.

A crítica especializada situa o autor no gênero surrealista. Não discuto isso, até concordo. Mas acho que, mais do que isso, A Lua Vem da Ásia é genial. E o genial nem sempre cabe em rótulos.

Se quiserem saber mais sobre Campos de Carvalho, aqui o link:

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Ler, Ver, Escrever...

Uma vez, quando eu era criança, fiz um desenho bem caprichado de uma pessoa de perfil, só o rosto. Na minha opinião tinha ficado muito bom. Mostrei pra uma colega de classe e ela me veio com essa: “tua pessoa só tem um olho, é?” e deu a maior risada sarcástica. Fiquei meio decepcionada, achando que meu desenho não estava tão bom assim, já que a colega não tinha conseguido compreender que era uma pessoa de perfil e, portanto, só podia aparecer um olho. Foi meio como o desenho da cobra que engoliu um elefante, no Pequeno Príncipe, que todo mundo pensava ser um chapéu. Porém, no meu caso, era muito mais injusto, já que uma pessoa de perfil deve ser autoevidente.

Acho que foi aí que começaram minhas dificuldades de comunicação com as pessoas. Sempre tive essa sensação de que, pra ser compreendida, preciso buscar as palavras exatas e as frases mais bem formuladas (ou os melhores desenhos), senão elas não vão me entender. Percebo que muita gente não presta atenção no que os outros estão falando. Isso comigo acontece o tempo todo: estou dizendo uma coisa e a pessoa está viajando pelo espaço sideral, conectada a outro tempo, olhando o trânsito. Eu sempre fico meio atônita (e muito, muito frustrada) quando não sou compreendida, ou, pior, quando sou interpretada da maneira errada. É sempre um susto, um soco no estômago.

Talvez daí também tenha surgido minha necessidade de escrever. Escrevendo, posso organizar melhor as palavras e os pensamentos, tenho o tempo de pinçar os melhores substantivos, adjetivos, de construir as melhores frases. As palavras são tão lindas e saborosas!

Etéreo. Pra ser falado sussurrando bem baixinho: “etéééreo!” Não é lindo? Delicado. De-li-ca-do. Cuidado pra não quebrar ao falar. Kkkkkk Estou viajando. A-le-sa-da. Lembrei agora do nome de Lolita estalando na boca de Humbert Humbert logo no primeiro parágrafo do livro. Que delícia!

Mas é assim: escrever pra ser compreendida, pra expressar, pra existir no mundo. Escrever porque é gostoso, e pronto. Isso nem sempre adianta, porque sempre tem aquelas criaturas de coração de pedra que acham tudo uma grande frescura: “escrever não enche bucho!”. Juro que já ouvi isso. Pode até não encher o bucho, mas enche minha mente de felicidade. Flocos de algodão voando na cachola, fazendo cosquinha. Djilícia!
E ler? Ler vem antes. Ler é escrever ao contrário, de fora pra dentro. As palavras entram na nossa mente e ficam ali, tatuadas, dançando, dando cria. É como viver várias vidas simultaneamente. É um "Quero ser John Malkovitch" ainda mais viajado. A gente vê o mundo pelos olhos de outras pessoas.

E o que melhor do que escrever sobre o que se lê, o que se ouve e o que se vê? Por isso o Porto Solar, grupo de leitura que existe no mundo real, se juntou também aqui, no mundo virtual. Acho que falo por todos do grupo quando digo que queremos compartilhar com os amigos a nossa paixão pelos livros, pelos filmes, pelas coisas boas, bonitas e interessantes que vemos no mundo.

Bom, dito isto, quero só deixar claro que Picasso encontrou uma maneira de fazer uma pessoa de perfil mostrando os dois olhos. Se eu fosse um gênio, como ele, não teria buscado as palavras. (risos)