Eu nasci numa família de
leitores. Acho que não pode haver maior sorte no mundo. Na casa do meu pai e na
da minha avó paterna eu estava sempre cercada por todo tipo de literatura.
Meu pai sempre gostou de história do Brasil e do mundo, deuses
astronautas, arqueologia. Tia Graça preferia os
romances, fossem os clássicos da literatura nacional e internacional, fossem os
feministas do pós-guerra em diante. Em sua estante tinha Jorge Amado e
Shakespeare junto com Simone de Beauvoir. E muitas, muitas revistas, desde as
femininas como Nova e Claudia até as semanais de informação. Minha vó tinha fixação pela
Roma antiga, e não sei porque
cargas d´água encasquetou que Nero era o maior monstro que já existiu na face
da terra. Não adiantava citar Hitler, Jack o Estripador, Átila o Huno. Não: Nero
era o pior e pronto. Ela contava as histórias sobre ele com um olhar
horrorizado, quase como se conta história de fantasma, com a voz um pouco baixa
pra não atrair o mal. Só faltava se benzer. Acho até que se benzeu mesmo
algumas vezes. No quarto de tia Graça havia uma prateleira alta numa estante onde
ficavam os livros proibidos pra mim, por causa da idade. Adivinha quais foram
os que eu li primeiro?
Minha cidade não tinha
livraria mas lá em casa sempre tinha livro novo. As fontes eram várias. Alguns
vinham de Recife, outros vinham de um catálogo chamado Círculo do Livro, mensal,
que vendia pelos correios e a gente sempre comprava. E por vezes apareciam uns
vendedores na porta, então tínhamos coleção completa de Graciliano Ramos, Machado de Assis, etc. Meu pai mantinha (ainda mantém) com os amigos uma rede de intercâmbio:
um compra e sai emprestando pros outros. O bom é que até hoje sempre me chega uma
novidade, e eu sempre empresto algum dos meus. Agora mesmo estou com dois
desses voadores.
Eu criança, todo mundo lia pra
mim. Eu tinha livrinhos com historinhas e ficava fascinada com as figuras de
uma Bíblia bem grandona de minha vó. Folheava durante horas sem saber ler, só
vendo as imagens. Depois que cresci foi que me dei conta de que aquelas eram
algumas das pinturas mais clássicas de todos os tempos: a última ceia de
Leonardo da Vinci, a descida da cruz de Rembrandt, a anunciação de Fra
Angelico. Quando fui ter aulas de história da arte no curso de Jornalismo,
todas essas pinturas já me eram familiares. Eu só não conhecia a teoria por
trás delas.
Alguns dos meus livros de historinhas
eu guardo até hoje. O primeiro que consegui ler por
mim mesma foi Pé de Pilão, de Mário Quintana. Conta
a história, em forma de versos, de um menino enfeitiçado por uma bruxa que vira
um pato e tenta livrar sua vó do feitiço que a transformou numa velha. Pra mim,
criatura super ligada à avó, essa história tinha muita importância. E ele tinha
umas ilustrações bem ao estilo dos anos 70, meio flower power, meio hippie.
Acho que demorei meses pra lê-lo todo, porque ainda estava aprendendo a juntar
as sílabas. Kkkkk Olha ele aqui.
Depois veio uma coleção
inesquecível: Reino Colorido da Criança – Imagem e Som. Eram contos e fábulas
de várias partes do mundo, com ilustrações riquíssimas (até hoje não vi nada
igual em parte alguma) e com algumas das historinhas narradas em disquinhos
coloridos. Olha uma das ilustrações aí à esquerda. Essa era de um conto árabe: o príncipe Kamar e a princesa Budur.
Minha vó tinha uma coleção
de poetas de língua portuguesa formada por mini livrinhos que cabiam certinho
nas minhas mãos de criança (abaixo, à direita). Nessa época eu já estava alfabetizada e já
conseguia ler dando o ritmo dos poemas. Até hoje sei de cor muita coisa de
Olavo Bilac, Castro Alves, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, etc. “Ora
(direis) ouvir estrelas!”... Essa coleção agora é minha, depois que ela morreu.
Já meu pai gostava de Guilherme de Almeida, Augusto dos Anjos... E tia Graça
era Vinícius de Moraes, Drummond... Eu juntava tudo e lia. Simplesmente ia
lendo.
A biblioteca municipal emprestava livros. Desde os oito,
nove anos eu já tinha minha ficha lá. O bibliotecário (não lembro o nome dele)
me adorava e sempre que eu chegava ele tinha separado algo pra me oferecer.
Comecei com os infantis e depois fui progredindo: biografia de Gandhi, Segunda
Guerra Mundial, etc. Até o dia em que a galera começou a roubar os livros e a
biblioteca deixou de emprestar. Alguém tinha que fazer uma cagada, né?
Tia Graça tinha uma amiga,
Dade, que tinha ido estudar na Inglaterra e, na volta, apareceu com um monte de
coisa interessante, em português: História da Arte da Universidade de
Cambridge, autores que eu não conhecia, etc. Todo sábado cedinho íamos para a
casa dela para, de lá, ir pra o centro da cidade fazer compras. Enquanto Dade
se arrumava e tomava café da manhã, eu rasgava o plástico dos livros dela e
lia. Fiquei versada em duas coisas: em autores novos e em peruíces como
maquiagem, roupas, bijoux, além de aprender antecipadamente sobre namorados com
as conversas delas. Hehehe
Meu tempo de leitura
propriamente dito se passava no terraço da casa de minha vó. Eram manhãs ou
tardes inteirinhas (dependendo do horário do colégio). Eu lembro da luz
dourada, do ventinho, da calma, do balanço das folhas do coqueiro que tinha no jardim, do prazer inacreditável que era ficar ali. Essas leituras não
tinham critério nenhum: o que caísse na minha mão eu lia. Tinha um carteiro que
também gostava de ler e todo dia parava pra conversar sobre o que estava lendo.
Há alguns anos, adulta, encontrei-o por acaso no meio da rua aqui em Recife e novamente conversamos
sobre livros. Hahahaha!
Assim, quando vim morar em
Recife, aos 16, eu já tinha lido Machado de Assis todo, Graciliano Ramos todo,
vários autores eu já tinha lido totalmente. Pro vestibular não tive maiores
dificuldades nessa área (em compensação, no restante eu sou totalmente
ignorante até hoje; não tinha tempo pra matemática, né?).
Mas quando eu pensava que já
estava bem adiantada na minha vida de leitora, surgiu ele: José Alexandre, o
gigante loiro que eu conheci no cursinho e que não foi com a minha cara por
pura inveja, porque eu estava lendo Os Versículos Satânicos e ele não tinha
lido ainda (risos). Passada a antipatia inicial (dele por mim, não minha por
ele), ficamos amigos. E ele me mostrou todo um universo que eu não conhecia:
Saramago, Sartre, Kafka, Camus, Bukowski, Asimov, etc. Como é que eu não
conhecia esse povo? Como isso nunca tinha caído na minha mão antes? Foi um período
mágico. Manhãs e tardes inteiras falando sobre livros, livros, livros. Porém,
não sei como, passamos os dois no vestibular: eu pra jornalismo, ele pra
engenharia.
Na faculdade (primeiro em
jornalismo na UFPE, depois em direito na UNICAP) começaram as leituras acadêmicas:
Foucault, Habermas, Bobbio, Kelsen. Descobri que, quanto mais complicado, mais
eu gostava. É bom queimar os neurônios. Em jornalismo, me maravilhei com a
história da arte. Amor sem fim, pra não abandonar nunca mais. Do curso de Direito
propriamente dito não li muita coisa, mas passei os cinco anos lendo filosofia.
Hahaha! A biblioteca da Católica é maravilhosa, e lá
eu descobri Joseph Campbell, Céline, Paul Auster... não tem livro que chegue!
Também aconteceram os
namoros literários: o namorado que lia o Bhaghavad Gita, que eu tinha em casa
mas nunca havia lido; o que me apresentou a Campos de Carvalho e sabia
Baudelaire de cor; o que lia os russos... em russo!
Por fim, não posso esquecer
dos grupos de leitura. Assim, de juntar os amigos e ler, simplesmente.
Primeiro, dois anos de Nietzsche. Domingo à noite, na casa de Poli, com
petiscos e refrigerante. E ninguém faltava. Depois, outro grupo na livraria
Cultura, mas demorou pouco.
E por último o Porto
Solar... Ah, o Porto Solar!...
Parecia o clube da
Luluzinha: cinco amigas doidas, toda sexta à tarde, aqui em casa, lendo e
fofocando. Não necessariamente nessa ordem. Hehehe. Muita risada, comida (nunca
comi tanta besteira na vida), e muita, muita leitura. Mitologia, história,
romance, qualquer coisa. Sempre bom, sempre leve, sempre alegre. Como nada no
mundo é eterno, acabou. Por vários motivos: casamento, trabalho, estudos, etc.
Ainda tentamos manter em outro horário, em outro dia, online, agregar mais
amigos, mas não deu. Mas a alma do Porto Solar continua. Aqui nesse blog, em
cada livro, em cada assunto legal que a gente vê ou fica sabendo, na amizade que continua.
Quando eu ouço Caetano
cantar que “os livros são objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor
táctil que votamos aos maços de cigarros”, sei exatamente do que ele fala. A
cada livro novo que eu pego, sinto o cheiro, folheio, todo um universo é
evocado em mim. É a memória afetiva mais forte, a mais viva.
É, os livros são uma parte
muito importante da minha vida. De certa forma a definem, definem a mim.
Lindo o seu texto, amiga! E delícia de lê-lo! Você escreve muito bem, e para escrever assim, só quem lê muito! Obrigada por compartilhar, obrigada por permitir te conhecer, já que a leitura é praticamente você! :)
ResponderExcluirMaria Luíza, quem sai aos seus não degenera, já diz o ditado. Tudo o que você leu na vida transparece na sua lucidez, no seu caráter, na retidão do seu raciocínio e no modo correto como você vê o mundo. E agora tudo isso está sendo passado para sua filha, como podemos ver pelos últimos fatos.
ExcluirÉ gente assim, rica por dentro, que eu quero ter junto comigo. Eu é que agradeço por sua amizade. Bjs
Ainda sinto minha perda (foi uma longa, intensa e bonita história)...mas descobrir e cercar-me de pessoas como você é um raro privilégio, Holandita, minha pernambucana favorita! Bjs
ExcluirHolandinha, que felicidade imensa de ter participado do Porto Solar e mais ainda, ter te conhecido.
ResponderExcluirOs livros são isso, um mundo de conhecimento, que nos abre a mente e faz enxergar coisas inimagináveis.
Engraçado qUE ontem falei de ti, estávamos eu e Adelmo na livraria Leitura, do shopping Tacaruna e eu vi uns livrinhos em miniatura, então falei pra ele da coleção que vc leu quando criança. Hoje foi o dia da cultura do Recife Antigo, passamos um tempo sentados naquelaS cadeiras, eu lendo mitologia, ele lendo o que mesmo? Nem consegui tirar os olhos do meu pra olhar o dele! kkkkkkk
Eu tb,como vc,nasci numa família de leitores e meu pai,assim como sua tia,tb era muito interessado pela história da Roma Antiga. Por sinal,estou lendo "Eu,Claudius, imperador" de Robert Graves, que pertencia ao meu pai e eu herdei.
Já minha tia ama literatura espírita e casei com um aficionado por Arthur Conan Doyle.
Enfim, quero transmitir a meus filhos essa paixão pela leitura desde cedo. Espero q eles olhem nossa estante com a mesma paixão q eu olhei desde cedo.
Saudades!
Thaís, através dos livros nós vivemos muitas vidas. Tenho muita pena das pessoas que não desenvolvem o prazer da leitura. O mundo delas é muito limitado.
ExcluirVocê só poderia mesmo ter casado com uma pessoa que gosta de ler. De outro jeito não teria como dar certo. E que venham mais leitorezinhos por aí! Hehehe
Eu tenho esse livro Eu, Claudius, Imperador. É um clássico! Imperdível! É um dos que faziam parte da biblioteca da minha casa e hoje estão aqui comigo. Leitura obrigatória.
Tão bom ter encontrado nosso Porto Solar! Um dos grandes presentes da minha vida!
Holandinha, que felicidade imensa de ter participado do Porto Solar e mais ainda, ter te conhecido.
ResponderExcluirOs livros são isso, um mundo de conhecimento, que nos abre a mente e faz enxergar coisas inimagináveis.
Engraçado qUE ontem falei de ti, estávamos eu e Adelmo na livraria Leitura, do shopping Tacaruna e eu vi uns livrinhos em miniatura, então falei pra ele da coleção que vc leu quando criança. Hoje foi o dia da cultura do Recife Antigo, passamos um tempo sentados naquelaS cadeiras, eu lendo mitologia, ele lendo o que mesmo? Nem consegui tirar os olhos do meu pra olhar o dele! kkkkkkk
Eu tb,como vc,nasci numa família de leitores e meu pai,assim como sua tia,tb era muito interessado pela história da Roma Antiga. Por sinal,estou lendo "Eu,Claudius, imperador" de Robert Graves, que pertencia ao meu pai e eu herdei.
Já minha tia ama literatura espírita e casei com um aficionado por Arthur Conan Doyle.
Enfim, quero transmitir a meus filhos essa paixão pela leitura desde cedo. Espero q eles olhem nossa estante com a mesma paixão q eu olhei desde cedo.
Saudades!
Lindo texto! Memórias, histórias, infância, leitura... tudo de bom! Você, como sempre, escrevendo tudo isso como ninguém. Te amo. Wilka
ResponderExcluirObrigada, Uquinha! Também te amo!
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