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domingo, 28 de julho de 2013

Minhas assombrações literárias - e um exorcismo


Alguns livros me metem medo. Tanto, mas tanto, que eu termino por não os ler. É que as pessoas, os críticos, o mundo dizem que eles são tão complexos, tão herméticos ou sobre assuntos tão fora do meu mundinho que eu acabo mistificando-os.

Na minha cabeça eles viram monstros ilegíveis, algo acessível apenas aos mais eruditos. Imagino a cena de alguém que consegue lê-los: um professor de Literatura de Harvard, de óculos fundo de garrafa e totalmente sem vida social, com uma testa enorme, à noite, sozinho numa biblioteca escura, com apenas uma lâmpada focando na página. Ele consulta dicionários, livros de referência sobre a dita obra, faz anotações e pausas para refletir. Tudo muito sério, muito compenetrado.

Como é que eu, Holandinha, uma mera leitorazinha curiosa, que leio deitada com os pés pra cima na parede e reclamando do carrinho de CD pirata que passa tocando funk das cachorras, vou ter condições de chegar num nível desses? Aff! O mundo literário é muito injusto. E o pior é que, não sei se por serem inacessíveis ou se simplesmente porque eu gosto de sofrer, estes são alguns dos livros que eu mais quero ler (roendo as unhas e rangendo os dentes de frustração. Kkk). Quem sabe algum dia?...

Vamos à minha lista de assombrações e, ao fim, eu conto uma que consegui exorcizar.
 

Finnegans Wake
Bom, pra começar, o mito do mitos: Finnegans Wake, de James Joyce. Esse malassombro é considerado um dos livros mais difíceis da literatura universal. É taxado de experimental, de aventura linguística, de genial, de experiência onírica, etc. O problema da leitura é o seguinte: é praticamente intraduzível, porque é cheio de neologismos. Então, quem quiser ler, melhor ler em inglês mesmo. Mas tem que se garantir no idioma, não são quatro anos de Cultura Inglesa que vão dar acesso a isso não. Um comentarista foi tentar explicar pra ficar mais fácil e começou assim: “Uma logorréica tempestade pré-babélica que se sustenta ao longo de mais de 600 páginas e numa mescla de mais de sessenta idiomas. Verdadeira selva de significantes”. Sentiu o drama? E de que trata o livro? E eu sei? A melhor definição que eu vi foi a de que, depois que muitos leitores falaram sobre ele, “foi-se chegando a um consenso sobre o elenco principal de personagens e o enredo geral”. Hahaha!!! Pra vocês terem uma ideia das dificuldades da tradução, vejam o quadro da Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Finnicius_Rev%C3%A9m Dizem que às vezes, à noite, Joyce vem puxar o pé dos leitores afoitos.


Ulisses, de James Joyce
Joyce nasceu com a única finalidade de me fazer infeliz. Tenho certeza. O segundo livro da minha lista é dele também. Nesse caso, a dificuldade não reside na tradução, mas no enredo em si. Ulisses é um romance cuja história se passa, toda, em apenas 24 horas da vida do protagonista, Leopold Bloom. Como eu não li, posso dizer apenas o que sei. O autor condensou a Odisseia, de Homero, nessas 24 horas (!!!!!), e o personagem principal vive todas as peripécias nesse período de tempo. Tudo é uma grande metáfora, e os seres mitológicos são trazidos para o ano de 1904 na forma de pessoas que vão cruzando o caminho de Bloom. Dizem que é difícil, mas muito difícil. Só para os iniciados. Se bem que também tem quem diga que o livro não tem nada demais, é apenas presunçoso. Mas eu continuo com medo dele. Ulisses é tão cultuado por quem conseguiu ler (ou fingiu que conseguiu só pra parecer inteligente) que existe até uma data, o Bloomsday, comemorada em vários países. Em Dublin, na Irlanda, onde se passa a história, os fãs fazem o percurso dos personagens pelas ruas da cidade nesse dia. Joyce 2 x 0 Holanda.


Fausto, de Goethe
Minha dificuldade de encarar esse livro não está nem na tradução nem na história, já bem conhecida: o pacto com o capiroto em troca de vantagens terrenas, blá blá blá. É que, reza a lenda, ele é meio caótico e o autor demorou mais de trinta anos pra escrever a versão que finalmente foi publicada, de forma que é preciso meio que conhecer o que se passou na vida dele, os momentos históricos e sociais correspondentes, etc. Além do mais, como muitos anos decorreram entre as redações das duas partes, em que ele se divide, não há uma linearidade, o tema muda, a visão muda, o gosto do autor muda, muda tudo, enfim. Pra completar, é em forma de poema. É. Vamos esperar mais um pouco para ler esse livro.

 
O Livro Vermelho, de Jung
Jung por si só já é uma viagem. Eu amo, adoro, sou fã. Já li muuuuita coisa dele. Algumas, como o Mysterium Coniunctionis, li de atrevida na adolescência, não entendi nada e tive que ler de novo depois de adulta e com maior conteúdo em termos de conhecimento. Jung era muito erudito, e se a pessoa não tiver um nível de leitura razoável, não consegue acompanhar algumas de suas obras. Outras, por outro lado, são bem acessíveis. O Livro Vermelho, ou Liber Novus, foi escrito logo depois do rompimento de Jung com Freud, mas só veio a público em 2009, porque os herdeiros o mantiveram proibido até aos estudiosos por 70 anos. Por quê? Pra começar, o livro (que é manuscrito) tem origem numa visão que Jung teve durante uma viagem: a Europa toda coberta de sangue e milhões de cadáveres boiando nas águas. Isso foi logo antes da Primeira Guerra Mundial. Ele compreendeu tal imagem como uma visão antecipatória, mas também a relacionou com uma radical mudança interior, com o seu momento particular de vida. A partir daí, mergulhou de cabeça na experiência do renascimento da divindade interior, do encontro do si mesmo, da transcendência das instituições. É uma obra bem pessoal e foi muito reescrita e revisada pelo autor ao longo da vida. Ele próprio nunca se sentiu confiante o suficiente para publicá-la. Eu não acho que a complexidade do livro seja intransponível, mas hesito em lê-lo (por enquanto) porque sei que, pra fazê-lo, é preciso abrir a mente, baixar a guarda e colocar as próprias experiências pessoais dentro do contexto. É preciso um certo nível de intuição. E talvez eu não esteja num momento propício para isso. Mas pretendo ler, sim, mais à frente.


Ainda tem outros livros que eu poderia citar, como o Aurora Consurgens, mas esses são os principais. Agora vamos ver um que eu consegui ler.

Um exorcismo – Grande Sertão: Veredas

Acho que, guardadas as devidas proporções, Grande Sertão está para a literatura brasileira assim como Finnegans Wake está para a literatura universal. Nunca vi nenhum outro livro brasileiro ser considerado tão hermético, tão difícil, tão ininteligível como esse. Antes que eu, finalmente, tivesse coragem de encará-lo, ele estava entre minhas assombrações literárias. Eu nunca tinha lido nada de Rosa, e resolvi que, se era para começar por algum lugar, começaria logo pelo mais difícil.

Gente, me apaixonei desde o começo!!! A linguagem, embora não seja a que usamos no cotidiano, não me pareceu em nada hermética nem incompreensível. Na verdade, acho que é mais uma questão de ritmo, de se acostumar a ela, do que realmente de entendê-la. O livro é poesia pura, é filosofia, é beleza se derramando pra todo lado. Meu exemplar está todo anotado, rabiscado, porque achei tanta coisa bonita que não queria perder, e saí marcando tudo. Eu penso que talvez ele seja mais difícil para os eruditos porque realmente se afasta muito da linguagem oficial. Mas para quem, como eu, é do interior do Nordeste e está acostumado a todo tipo de neologismo e a trocentos jeitos de falar, não tem grande complicação, não. Ler Grande Sertão foi um exorcismo e tanto, foi um grande encorajamento na minha vida de leitora (risos). Já faz muitos anos que li pela primeira vez, e já reli, reli...

 

Agora preciso tratar de desmistificar minhas outras assombrações. Tudo a seu tempo.

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